Onde há muito mais de nós mesmos...

Por Regiane Litzkow



Eu vou me lembrar...



Eu vou me lembrar de você porque os dias azuis me trarão de volta o teu olhar, e eu repousarei nas tardes de domingo olhando para céu.
Eu vou me lembrar porque no início das noites não sairá fumaça de sua chaminé, a luz fraquinha da sua casa acenderá forte a saudade.
Vou lembrar sempre que chegar do trabalho, subir as escadas escuras e não encontrar uma sacola na maçaneta com algum agradinho singelo.
Eu vou me lembrar  toda vez que passar pela janela da cozinha e não me deparar com a ternura dos seus acenos.
Vou me lembrar porque você amava as cores vivas e os ipês ainda colorem os arredores.
Vou me lembrar quando as crianças correrem brincando felizes aqui na rua, porque você povoou este lugar e seus traços estão eternizados em cada uma delas.
Eu vou me lembrar quando eu passar pelo portão e o vento tocar meu rosto, eu fecharei os olhos e verei o seu semblante sereno, os seus gestos calmos e a sua fala branda sempre no diminutivo; o “amorzinho” que nunca coube todo em você, escorria de todos os seus lados. Escorrerá também pelos meus olhos, escorre já agora.
Eu vou me lembrar de você mesmo que eu corra e me esconda na intimidade do meu quarto, cada objeto ali tem uma história contigo, até a pintura da parede que fizemos vai me convencer de que você estará lá comigo. Ao deitar, como de costume, irei me cobrir com os cobertores que você fez sob medida para mim na sua máquina de pedal, e isso há de me aquecer por fora e por dentro.
Eu vou me lembrar porque os teus medos tão ingênuos me fizeram a respeitar ainda mais, porque os conselhos que você me deu não vieram por fala, vieram através dos teus passos.
Eu vou me lembrar de você porque a sua presença implica em tudo o que é feito de paz, porque enquanto muitos lhe traziam flores, eu assisti uma reconciliação entre dois olhares, em seguida, o abraço, os soluços, as vozes embargadas, constrangidas pelo amor que você sempre semeou.
Vou me lembrar porque uma noite antes, eu fiz uma prece por você, embalada pelo refrão You can always come back home - Você pode sempre voltar pra casa – e adormeci. Mas, no outro dia, você não voltou para casa. Não voltou porque sequer saiu. Sua casa é a nossa memória viva a cada instante, sua sala de estar é o nosso coração. Eu vou me lembrar sempre porque não quero esquecer nunca. Pode ficar à vontade.


Não desista do amor.



Não desista do Amor, ainda que lhe roubem todos os sorrisos. Estou certa de que o amor não causa frustrações. Pessoas causam frustrações. O amor nunca falha. Nós falhamos. O amor é um sentimento perfeito administrado por seres limitados. Verbo nobre conjugado por sujeitos simples. Ação simples sujeita a indivíduos complexos. É o princípio de toda a criação. Nós, na condição de criaturas, somos sua consequência. O amor é a própria essência do Criador espalhada vida afora, vida adentro, vida que segue. O amor é a maior de todas as nossas oportunidades. É a oferta constante de um abraço sincero entre você e a vida. É um convite a luz sempre de prontidão. O amor não desiste de nós. Nós desistimos de nós quando desistimos do Amor.

Do sentir...



Hoje, parei por alguns instantes para olhar o céu. Deixei o azul me invadir até preencher todo o vazio que sentia. Olhei ao redor e percebi que a vida ainda fluía por todos os lados. No verde das matas, no gato que se espreguiçava, no bebê que trocava seus primeiros passinhos arrancando orgulhosos sorrisos no casal que o acompanhava... Percebi que, por mais que meu espírito esteja abatido, a vida resiste, e suas belezas continuam ali latentes. Parece-me ser um modo de Deus nos dizer que está presente sempre. Uma amostra de que felicidade vai muito mais além do que o bem que esperamos para nós mesmos. Um sinal de que nossas angústias e perdas não podem nos governar ao ponto de roubar nossa sensibilidade e transformar-nos em seres indiferentes à ternura. Deixei o sol arder o meu rosto e, em meio à estas certezas, esbocei um sorriso com o olhar. Não porque parou de doer, mas pelo privilégio de passar pela dor sem perder a doçura da alma.

Cheiro de flor





De todas as coisas que cortam meu coração, o perfume da minha mãe é o que mais me dilacera.

Admiti isso ontem, após despedir-me dela com um abraço, enquanto atravessava a cidade ao anoitecer, percebi que seu cheiro havia ficado nos punhos da minha camisa.

Certos laços nos amarram, de tal modo, que constituem nós. Desses, não nos desprendemos jamais.

Logo que se separou do meu pai, em suas visitas sazonais, minha mãe sempre nos trazia uma sacola contendo bolachas, balas e doces.

Era certo que deixaria impregnar as alças da sacola com aquele seu odor floral que, por vezes, se espalhava até pelas embalagens que carregava ali.
Logo que partia, meu pai sempre resmungava algo, reprovando aquele excesso de fragrância. Nós ríamos de sua rabugice com as bocas todas lambuzadas das guloseimas, enquanto eu aproveitava a distração de todos para afanar a perfumada sacola. Dobrava e a escondia cuidadosamente entre a blusa e o peito.
Reduzia meus movimentos para que ninguém percebesse. Se meus irmãos vissem, certamente zombariam. Papai poderia se chatear. E o que pensariam meus amigos se descobrissem que eu tinha apego a uma sacola? Necessitava muita cautela, até conseguir ficar só e guardá-la em um local mais seguro. Lugar que se tornava uma espécie de santuário. Era quase um ato devocional eu retornar ali todos os dias. Evitava chegar muito perto. Acreditava que se abusasse do contato, o aroma mágico se gastaria. Fazia economia apenas contemplando. E quando não conseguia me conter, aproximava-me e inspirava com toda a força dos meus pulmões infantis, na vã tentativa de saciar-me por completo. Era sempre assim, até que se desse outra visita e eu conseguisse substituir a sacola por outra recarregada daquele cheiro doce.
Numa manhã de verão inesquecível, surpreendentemente, mamãe nos esperava na portaria da escola. Como sempre, linda e despreocupada, roubando os olhares ao redor. Acompanhou-nos de mãos dadas até em casa, almoçou conosco, distribuiu presentes, guloseimas e, ao fim do dia, revelou que estava de mudança para longe.

Era a despedida. A última sacola...
Durante os anos seguintes, mantive o ritual. A princípio, meu olfato logo reconhecia os vestígios dela ali. Com o tempo, só restou o cheiro de plástico.
A constatação disso me custou muito mais lágrimas do que a própria despedida tempos antes. Eu me acostumara a viver sem a minha mãe, não sem o perfume dela. Aquilo já era abandono demais! Não sabia se me faltava o ar por conta do choro convulsivo ou pela ausência do meu cheiro favorito.

Chorei outras vezes depois, mas a falta costuma roubar o espaço que algo deixou na vida da gente e, aos poucos, ela se acomoda e passa a fazer menos barulho.
E foi no silêncio que mantive, por anos, minha sacola de estimação. Já não passava de uma sacola furada comum, mas eu ainda via sentido em guardá-la. Descartável é um termo muito pessoal, por assim dizer, varia da necessidade de cada um.
Uma sacola acalentou-me diversas vezes. Depois, eu cresci, reencontrei várias vezes o abraço da minha mãe adocicado por aquele perfume e entendi que sou incapaz de eternizá-lo como queria.
Essa idéia foi se tornando mais forte, consolidando-se junto à noite. Enquanto eu caminhava, revezando entre os dois pulsos que levava ao nariz, afetados por aquele cheiro único. Cabeça erguida, coração cheio, ignorei os demais transeuntes... Perdi o medo de ser ridícula. Decidi prolongar ao máximo esses momentos doces que exalam cheiro de flor.

Punhos, sacolas, fragrâncias... Tudo expira.

Mas muito mais adentro do que entre a blusa e o peito, é no coração onde carregamos o verdadeiro bem durável, o melhor de todos os perfumes; o amor.

Ciranda, cirandinha, vamos todos cirandar...





A vida segue em ritmo de maratona.
Fico para trás, perdida, a rodar. Círculo que aumenta e diminui, ao passo que as pessoas entram e saem. Ultimamente, mais saem. Desespero. Não se ciranda sozinho.

Recentemente, passava os olhos nos filhos de uma amiga que precisou sair às pressas e não pôde levá-los consigo. As crianças reuniram outros amiguinhos para brincarem e revezavam-se entre um computador e um vídeo-game.
Juntas, somavam cinco crianças, o que sempre obrigava uma delas a ficar de fora dos jogos em uma rodada. Sucessivamente, quem perdia cedia a vaga para o outro que não estivesse jogando. O tumulto era certo ao fim de cada jogo. Reclamações, discussões, insultos e o repetido chororô de quem precisava sair.
Já não conseguia mais me concentrar em minha leitura, quando resolvi intervir.
Vesti minha máscara de adulta e comecei exigindo uma explicação para toda aquela confusão. Falavam todos ao mesmo tempo. O menino maior, de uns oitos anos, me assustou. Tinha toda postura de revolta do mais injustiçado dos homens e estava disposto a obter seu direito à qualquer custo. O excesso de gesticulação e os olhos inflamados, gritavam muito mais que sua voz rouca alterada.
Eu precisava ser sábia. Eram apenas crianças, disse para mim mesma.
Em meio à gritaria, tentei retornar à minha infância em busca de alguma solução. Surgiu-me, de imediato, a doce lembrança dos velhos terreiros mineiros, espaço predileto nos fins de tardes e nas noites de lua cheia. O pátio mal acabado do grupo escolar. A sala do antigo casarão, cujos passos sobre o assoalho tinham a rítmica mais ingênua do universo. Cenários que acolhiam meninos e meninas de todas as idades, com as mãos entrelaçadas, formando o coral que entoava a conturbada relação amorosa entre o Cravo e a Rosa, o caso do moribundo Samba Lelê, Se essa rua, se essa rua fosse minha... Numa explosão de saudosismo sugeri:

- Que tal brincarmos de roda?!

As vozes acalmaram-se repentinamente, até o silêncio ser rompido pela garotinha que queria entender a brincadeira. Todas as atenções voltadas para mim, dediquei-me a explicar com empolgação, quando a mesma menina me interrompeu, questionando quem ganhava e quem perdia. Respondi-lhe que não era uma brincadeira de competição e que objetivo era tão somente se divertir. As interjeições de frustração e desdém vieram em uníssono. E antes que eu sequer argumentasse, já haviam me dado às costas e retomado seus postos nos jogos.

Resignada, deitei-me novamente. Em vez da leitura, perdi-me em pensamentos que me fizeram olhar para bem dentro de mim.
Nunca fui dada à competições, o que me desloca bastante neste mundo. Analisei vários aspectos da minha vida. Me senti muito mal, mas não cogitei a hipótese de ser diferente. Para amenizar, atribuí a causa ao meu senso socialista. Mentir para si mesmo não é uma idéia inteligente. Admiti a covardia. Só entrei em disputas quando tive certeza da minha vitória.
Perdi muito, mesmo sem disputar. Quem não aceita desafios por medo de perder, já é por si só perdedor.
Engoli o choro quando uma mãozinha me tocou... Era o menorzinho da turma, me pediu que brincasse de roda com ele. Antes que eu olhasse para aquela atitude como um vestígio de esperança para o meu próprio drama, ele acrescentou trocando o som de algumas letras:

- Cansei de perder.

Mal sabia falar, mas já aprendia o jogo da vida.

Sorri para ele e nos demos as mãos como quem só tem um ao outro, embalados pela triste cantiga de alguém que, um dia,  também rodou:

"...O amor que tu me tinhas era pouco e se acabou."

Elas por ela




Os olhos que abrigam incertezas
Doces segredos da alma feminina
Utilizam-se de infindáveis sutilezas
Diante do que o mundo determina

Suaves mãos que bordam proezas
E as que a bolsa giram na esquina
Têm donas de incontáveis belezas
Moça, senhora, mulher ou menina

Seu seio aconchegante; um vulcão
Acolhe os guerreiros na madrugada
Razão de tanto suspiro pela avenida

Alimenta a criança recém chegada
Guarda aquilo que dá sentido à vida
Sua fábrica de sonhos; seu coração.

A Menina e o Poeta


Uma misteriosa menina
Um poeta sonhador
Um encontro inspirador
Uma história, uma sina

Uma paixão se descortina
Revela-se em versos de amor
Enche um coração acolhedor
De uma paz que já o domina

É tomada de plena ternura
A menina dos olhos de mar
Só, ela nunca mais estaria

Guiar-se-ia por aquele olhar
O versejador da calmaria
Com poemas que tudo cura.

Tudo o que se vai




É estranho assistir certas coisas como espectadores, quando somos parte interessada da história.
O abandono nunca vem com a mesma sutileza que utilizam as conquistas. Por mais que chegue em doses homeopáticas, o abandono sempre é rude. Há quem diga que perdas radicais, dessas inesperadas, são muito mais dolorosas. Quanto mais eu vivo, menos me convence essa teoria.

Até à adolescência, costumava ficar horas recapitulando o dia em que a minha mãe saiu de casa. Não houve desespero, lágrimas bater de portas ou pedidos de perdão... Ela simplesmente saiu, sem despedida, sem bagagem, virou-se e foi. Eu, como única testemunha daquela cena, fiquei ali estática, olhando até que ela desaparecesse na primeira curva. Sabia, intuitivamente, que ela não voltaria. Apesar disso, permaneci ainda um bom tempo parada do lado de fora, olhando atentamente para a esquina vazia. A inércia tomou o lugar das lágrimas que não me vieram. Fui tantas vezes interpelada por adultos que queriam entender o que houve, escutava deles sempre a mesma indagação de que eu devia estar esquecendo de algum detalhe. Era inútil responder que não, eu era muito criança para obter tanto crédito. Eram tão insistentes que essa pergunta me acompanhou durante anos e passou a ser mais minha do que de qualquer um deles.

Demorou tempos para que eu descobrisse que minha mãe já estava indo embora bem antes daquele dia. Todos os dias ela ia um pouco, e mais um pouco, até ir de vez.

Anos antes daquele vinte e cinco de agosto, numa tarde de domingo, ela passava mal e se queixava das louças na pia que haveria de lavar. Eu saí quieta do quarto, peguei com muito esforço uma cadeira, me equilibrei em cima dela e resolvi que, pela primeira vez, lavaria louça para minha mãe e ela ficaria muito feliz comigo. Tive a "brilhante" idéia de que em vez de detergente comum eu usaria um sabonete perfumado que ficava no lavabo. Com a espuma que restou na pia, eu modelei um coração enorme. Após o grande feito, fiquei ansiosa, esperando que minha mãe se levantasse e percebesse a surpresa. Retoquei várias vezes o coração, mas ela demorou tanto que a espuma secou e ele ficou pequeno e deformado. Até que ela surgiu e, antes que eu dissesse qualquer coisa em minha defesa, brigou muito comigo por causa do sabonete. Irritada, empregou-se em lavar tudo novamente. Ao primeiro jato d'água extinguiu-se todo resto da espuma e um fio de esperança desceu junto cano abaixo. Esse é o primeiro registro que tenho de que minha mãe já não estava mais lá comigo. Só estamos verdadeiramente em um lugar, se nosso coração e alma também estão ali. Daí por diante, fui identificando vários outros vestígios da partida dela.

Curioso é a constatação de que essas passagens nunca me produziram revolta ou raiva. Ao contrário disso, eu a abraçava e pedia desculpas aos prantos. Preferia assumir uma culpa que sequer tinha, como se essa atitude pudesse reverter aquele quadro de abandono contínuo.

Ainda hoje faço isso, não aprendi lidar com perdas e acho que nunca vou aprender. Me comporto feito a mesma criança quando percebo que algo está me escapando. Sofro às prestações e fico esperando a despedida final que pode bater à minha porta a qualquer instante e sair por ela sem olhar para trás.

Acho ser por isso que quando chega a hora temida já não existem mais lágrimas. Mas não se enganem, é aí que inside toda a coletânea da tristeza. A certeza de que o momento viria e não ter sido capaz de evitá-lo, sempre diminui algo em nós.

Resta-nos deixar que se vão, recolher os cacos e conservar num canto especial da memória o que foi lindo.

Pra ser sincera, não me recordo de muitos momentos lindos com minha mãe, mas se pudesse voltar no tempo, lavaria toda a louça de novo, desta vez com detergente. Faria também um coração de espuma ainda maior e se ela não o visse, faria com que ela enxergasse o meu próprio coração.

METAMORFOSE



Era apenas lagarta, julgava-se desafortunada.

Incorformada, clamava por vôos e cores vibrantes.

Escrava dos sonhos, enclausou-se.

Desaforo! Entregou-se à própria sorte.

Quando envolvida em seu casulo deu-se o tal esquema.

Trazendo toda beleza à seu domínio.

Fascínio! Da leveza ao colorido das asas...

Essas asas que prometem liberdade. - Falsa liberdade!

Desde então, vaga obstinada, presa eternamente ao encanto das flores.

DIALÉTICA



"É claro que a vida é boa

 E a alegria, a única indizível emoção

 É claro que te acho linda

 Em ti bendigo o amor das coisas simples

 É claro que te amo

 E tenho tudo para ser feliz


 Mas acontece que eu sou triste..."


Vinícius de Moraes